As pessoas erram, devem pagar por seus erros. Os erros são originados por diversos tipos de problemas, eles acontecem até mesmo na busca de uma solução.
Punição: é dar castigo, aplicar correção, reprimir quem errou.
Reabilitação: é a possibilidade de readquirir a estima pública ou particular, de trazer de volta o indivíduo que errou para o convívio da sociedade.
Punição + Reabilitação é a solução?
Trabalho de campo na delegacia
Com a indicação de um delegado conhecido do meu pai, tivemos acesso à Delegacia da Lagoinha, para realização do trabalho de campo. Neste trabalho fizemos entrevistas com os presidiários abordando temas sobre seus sentimentos. O acesso à delegacia somente foi possível devido à indicação deste delegado, portanto não tivemos uma oportunidade para nova visita. Também não foi permitida a entrada da Letícia na delegacia, em conformidade com as normas estabelecidas.
Já no acesso às dependências da delegacia fiquei um pouco apreensivo, pois sentia no ar uma mistura dos sentimentos dos presos: conflito x medo x morte. A gritaria vinda das celas aumentava minha apreensão. Numa cela que cabiam cinco detentos tinha de trinta a quarenta presos. O odor de dentro das celas era forte, mas não desagradável. O amontoado de roupa e utensílios era monstruoso, de tal forma que mal se enxergava o seu interior.
Durante toda a visita fui acompanhado por um agente da polícia civil. Ao chegar numa sela determinada pelo agente, foi feito um silêncio para que o mesmo me apresentasse. Quando me apresentei, um homem aparentando ter uns 40 a 45 anos de idade, se dirigiu a mim rapidamente, querendo saber do que se tratava. Logo em seguida de minha apresentação, aos poucos foram fazendo uma aglomeração nas grades da cela, todos querendo saber do que se tratava. Logo em seguida percebo que o homem que se dirigiu a mim se tratava do líder da cela. Quando o suposto líder conversava comigo, o restante fazia um sonoro silêncio em respeito ao líder.
O primeiro contato dos detentos comigo, era para saber se eu era promotor, jornalista, policial ou oficial de justiça. Aos poucos eles foram se soltando mais e chegavam cada vez mais perto, querendo fazer mil perguntas, tais como: mensalão, atlético e cruzeiro, clima, bairros entre outras coisas. Eu senti que o contato com o mundo de fora e principalmente as suas famílias era o fator que mais se exaltava em seus sentimentos. A maioria sentia saudade de seus filhos.
Com o passar do tempo alguns já contavam algumas particularidades para mim, pois eu já falava um pouco a língua deles, que é feita com bastantes gírias. O contato que tivemos se manteve em o mais formal possível, demonstrando que, de alguma forma minha pesquisa seria útil para todos eles.
O pensamento de todos é de sair logo da cadeia, para continuar a sua vida, ou para construir uma vida nova. Mas infelizmente, para alguns não havia outro caminho a não ser o de voltar para a criminalidade.
Resenha do Livro Valetes - Kiko Goifman
A violência, com suas múltiplas faces, encontra-se na pauta dos “problemas sociais” cotidianos e, historicamente, a prisão vem sendo apontada como solução institucional ao problema da criminalidade. Essa “solução” entretanto nunca se libertou de críticas, nem mesmo no período de implantação, sendo atualmente um dos momentos de maior questionamento à sua funcionalidade, ou às suas precárias condições materiais e pessoais, no caso brasileiro.
A reclusão torna-se um grande transtorno na evolução social, pois muitas das práticas disciplinares e casos brutos de torturas por parte dos agentes penitenciários são freqüentes. O que padece a sociedade é que nem mesmo os disciplinadores, os policiais, os agentes penitenciários, possuem o grau de maturidade, desenvolvimento cognitivo e internalização das leis que exigem dos presos. Isto é, o sistema prisional exige do preso uma atitude frente às regras que ele mesmo não têm. Por isso, Habermas afirma que os problemas de transgressão das regras são referentes a níveis morais inferiores na sociedade.
Na cadeia ocorre a materialização do sujeito da regra imposta, ou seja, é mais uma forma de espelho social, para as pessoas de fora verem que a regra deve ser respeitada, do que um símbolo da reabilitação. Porque os valores são criados no mundo da vida, não no sistema poder. Apesar do sistema prisional ter uma ligação direta com o mundo da vida, devido às leis jurídicas e morais estarem encarnadas no castigo.
Deste modo, as penas alternativas são importantes para aproximar os sujeitos que tem potencial comunicativo, que por algum motivo particular se envolveram com o tráfico, com pequenos furtos e não são pessoas perigosas. Neste caso, uma assistência que valoriza os cânones do mundo da vida, fora do sistema fechado, é mais interessante do que o castigo da reclusão. Um outro ponto muito importante é olhar as penas alternativas como um mecanismo viável, uma ferramenta rápida que pode ser tirada do papel sem muitos problemas burocráticos e que terá retorno em pouco tempo.
Informações adicionais:
O texto "o Sentimento dos Presos", foi escrito após visita à uma Delegacia de Polícia.
A música "Diário de um detento" foi composta por Rennan Beck do grupo Racionais Mc's
DIÁRIO DE UM DETENTO
"São Paulo, dia 1º de outubro de 1992, 8h da manhã/ Aqui estou, mais um dia/ Sob o olhar sanguinário do vigia/ Você não sabe como é caminhar com a cabeça na mira de um HK/ Metralhadora alemã ou de Israel/ Estraçalha ladrão que nem papel
Na muralha em pé/ mais um cidadão José/ servindo o Estado, um PM bom/ passa fome, metido a Charles Bronson/ Ele sabe o que eu desejo/ Sabe o que eu penso/ O dia tá chuvoso/ O clima tá tenso/ Vários tentaram fugir, eu também quero/ Mas de um a cem, a minha chance é zero/ Será que Deus ouviu minha oração?/ Será que o juiz aceitou apelação? (...)
Cada detento uma mãe, uma crença/ Cada crime uma sentença/ Cada sentença um motivo, uma história de lágrima, sangue, vidas e glórias/ abandono/ miséria, ódio/ sofrimento/ desprezo/ desilusão/ ação do tempo/ Misture bem essa química, pronto:/ fiz um novo detento
Minha palavra de honra me protege/ pra viver no país das calças bege/ Tic-tac, ainda é 9h40/ O relógio da cadeia anda em câmera lenta/ Ratatatá, mais um metrô vai passar/ com gente de bem, apressada, católica/ lendo jornal, satisfeita, hipócrita/ com raiva por dentro, a caminho do centro/ olhando pra cá/ Curiosos é lógico/ Não, não é não/ não é o zoológico
Minha vida não tem tanto valor/ quanto seu celular, seu computador/ Hoje, tá difícil, não saiu o sol/ Hoje não tem visita, não tem futebol/ Alguns companheiros têm a mente mais fraca/ Não suporta o tédio, arruma quiaca/ Graças a Deus e à Virgem Maria/ Falta só um ano, três meses e uns dias/ Tem uma cela lá em cima fechada desde terça-feira/ Ninguém abre pra nada/ Só o cheiro de morte pinho sol/ Um preso se enforcou com o lençol/ Qual que foi? Quem sabe? Não conta/ Ia tirar mais uns seis de ponta a ponta (...)
Amanheceu com sol, dois de outubro/ Tudo funcionando, limpeza jumbo/ De madrugada eu senti um calafrio/ Não era do vento, não era do frio/ Acerto de conta tem quase todo dia/ Ia ter outro logo mais, eu sabia/ Lealdade é o que todo preso tenta/ conseguir, a paz, de forma violenta/ Se um salafrário sacanear alguém/ leva ponto na cara igual Frankstein
Fumaça na janela, tem fogo na cela/ F..., foi além/... se pã!, tem refém/ Na maioria, se deixou envolver/ por uns cinco ou seis que não têm nada a perder/ Dois ladrões considerados passaram a discutir/ mas não imaginavam o que estaria por vir/ Traficantes, homicidas, estelionatários/ uma maioria de moleque primário/ Era a brecha que o sistema queria/ Avise o IML, chegou o grande dia/ Depende do sim ou não de um só homem/ que prefere ser neutro pelo telefone/ Ratatatá caviar e champanhe/ Fleury foi almoçar que se f.. a minha mãe/ cachorros assassinos, gás lacrimogêneo.../ quem mata mais ladrão ganha medalha de prêmio
O ser humano é descartável no Brasil/ como módes usado ou Bombril/ Cadeia? Claro que o sistema não quis/ esconde o que a novela não diz/ ratatatá, sangue jorra como água/ do ouvido, da boca e nariz/ O Senhor é meu pastor.../ perdoe o que seu filho fez/ morreu de bruços no salmo 23/ sem padre, sem repórter/ sem arma, sem socorro/ vai pegar HIV na boca do cachorro/ cadáveres no poço, no pátio interno/ Adolf Hitler sorri no inferno/ O Robocop do governo é frio, não sente pena/ só ódio e ri como a hiena/ Ratatatá, Fleury e sua gangue/ vão nadar numa piscina de sangue/ Mas quem vai acreditar no meu depoimento?
Dia 3 de outubro, diário de um detento."
O SENTIMENTO DOS PRESOS
No primeiro momento, toda a população carcerária evita todo e qualquer contato com pessoas desconhecidas. Insistindo e tentando uma aproximação, conseguimos aos poucos, e com muita paciência, conversar mais de perto com alguns deles.
O sentimento inicial de todos eles é muito parecido. A desconfiança é geral. A partir do momento que se deixam conhecer, verificamos que como qualquer grupo, existem semelhanças e diferenças entre eles.
O que nos deu abertura para uma conversa mais íntima, é a esperança que eles têm de ser ajudados. Quando imaginam que podem tirar algum proveito de nossa conversa, se abrem e falam até mesmo de sua intimidade.
È muito comum o sentimento de injustiça. Todos têm uma boa justificativa para estar ali. Colocam a culpa em outras pessoas, na sociedade, no governo, mas nunca assumem que cometeram algum tipo de crime. Ressaltam sempre que foram levados a fazer aquilo. Dizem em coro que se tivessem tido oportunidades na vida, hoje não estariam ali. Não se conformam de maneira alguma com a realidade aqui de fora. A vida lá dentro é ruim. Mas ficam mais incomodados com a vida boa que algumas pessoas levam do lado de fora. É contraditório... Ao invés de lutarem por uma vida digna lá dentro, se revoltam pela vida boa que julgam poder levar aqui fora.
Outro sentimento da maioria é a preocupação com a família, apesar de nem todos a terem. Alguns se aproveitam de mães e mulheres para conseguir algum benefício. Mas, a maioria deles sente saudade de alguém... De uma mãe zelosa, de uma mulher apaixonada ou de um filho que não viu crescer. Alguns também têm vergonha. Poucos. Vergonha das mães que até hoje cuidam e defendem seus filhos. Vergonha dos filhos que já cresceram e se espelham neles.
Muitos têm medo da traição. É outro medo geral. Uns sentem medo de serem traídos pelas mulheres. Medo e vergonha de que um outro homem assuma o seu lugar lá fora. Muitos continuam sendo os chefes da família mesmo estando presos. Existe também o medo da traição lá dentro do presídio. Esta é imperdoável! É uma traição que pode lhe custar a vida. Lá dentro se dorme com um olho fechado e o outro aberto. Em determinadas situações a traição é a única saída. Muitos traem para pagar dívidas e salvar sua pele. A traição é uma bola de neve. Ela desencadeia processos de transição de poder.
O poder é algo que todos eles almejam. É muito importante mandar ou estar perto de quem manda. A hierarquia lá dentro é muito respeitada. Não a hierarquia do Estado. A lei que manda lá dentro é muito própria, criada por eles mesmos. Esta lei é muito mais respeitada por eles do que a lei aqui de fora.
Os presos, não têm medo da sanção. Roubam, matam, cometem todo tipo de delito sem medo do castigo. Sonham com a liberdade, mas não têm medo de perdê-la novamente. O arrependimento é um sentimento quase inexistente.
Mas, apesar de tudo isso, numa conversa mais profunda com alguns presos, conseguimos perceber sentimentos bem parecidos com os de quem está aqui do lado de fora. A igualdade é uma utopia com que todos sonham... È interessante, pois em alguns momentos, se fecharmos os olhos e escutarmos o desabafo de certos detentos, podemos imaginar que estamos num barzinho ouvindo as queixas de um amigo.
Apesar do erro, não podemos nos esquecer que se tratam de seres humanos. E como tais, sorriem, choram, sentem medo, saudade, esperança... Querem namorar, casar, criar seus filhos. Mas, tudo isso misturado com a revolta de uma vida condenada pelos próprios erros. Uma vida num lugar sem a mínima condição de ser digna. Mesmo para quem esteja ali para pagar. Ou melhor, para quem está ali para "corrigir o erro".

Foto do Filme Carandiru

Foto do Filme Carandiru
Você poderá obter informações sobre este assunto no site do Ministério da Justiça. Neste site você poderá encontrar vários textos como por exemplo "Educação e trabalho, instrumentos de ressociabilização e reinserção social"
www.mj.gov.br/depen/publicacoes/